sábado, 7 de julho de 2012

Manual dos Desajustados

Na minha vida fiz tudo errado
e deu certo
não “certo” no sentido de “certo”
mas no sentido de que eu não poderia
deixar de estar aqui.

Aliás, eu bem poderia deixar
de ser essa poeira à beira do caminho,
essa embalagem descartável de um vazio maior
que a rotina dos infelizes.
Eu poderia muito bem
deixar de ser esse riso sem eco
nem continuidade
esse humor mal humorado
esporádico e desusado;
deixar de ser esse livro na estante
inconsultável e distante
esse brinquedo de um destino que não sabe brincar
essa fruta podre atirada no vácuo
essa sombra sem luz, arma sem guerra
boi subindo a serra, um mero
animal dormindo no zoológico de seus passos
ou inseto metamorfoseando
no casulo fotográfico das tempestades.

Eu poderia deixar de ser
esse inseto, poeira, sombra ou besteira
dita pela boca de uma criança boba
ou pelos fantasmas que inventei
quando eles mesmos me inventaram
com a reciprocidade caduca
de uma fuga maluca ou aversão
ou ojeriza ou arrependimento
de ser o que sou.

Mas deixar de ser não pude
e fui, cumpri o amargo papel
de desempenhar todas as coisas sem sentido
que se acumularam em minha memória
irrisória
como detritos no ralo,
como restos desprovidos de charme
do banquete do inferno de ser;
cumpri o papel
de elaborar uma imagem razoável
a partir de um ego detestável
e arrogante e fui uma promessa
de uma nova humanidade da qual
já não me lembro quais valores
fundariam o verdadeiro gosto de viver
sem depender dos horrores
da moda
que destroem o meio-ambiente.

Mas essa promessa foi em vão;
essa imagem foi um mero vampiro
que apartei de meu íntimo e cultivei
no âmago de um amargo
sonho esquizofrênico sem sentido
nem embargo; e apesar de tudo isso
ganhei maior consciência de meu desastre
mas continuei poluindo
o meio-ambiente, as cabeças e as fotografias
que se Deus quiser serão queimadas
no incêndio das almas penadas.

O papel que cumpri, cheio de memória
e história particular e intransferível,
que é justamente esta, a de bar,
a história sem memória contada
como anedotas numa conversa fiada,
nos serões do sobrado
ou numa roda de drogados
por ser maior droga do que a própria
droga que alucina e assassina
o que há de mais paradoxal e imenso
na alma pequenina – foi um papel
que não cabe na tragédia do Paraíso
nem na comédia do Inferno
por ter sido demasiado irrisório e sem graça.

Na minha vida fiz tudo errado,
não pude deixar de ser e fui;
eu fui tudo o que fiz de errado
e que me levou ao flagelo
de ser um prédio cheio de andares
interditado e vazio, procrastinado
pela ânsia dos outros
de ver as coisas caírem aos poucos.

Flagelo de ser um oceano
cheio de peixes
ameaçados de extinção.
Flagelo de ser uma borboleta
sem asas, uma águia sem garras,
um Apolo sem cabeça, um terço sem cruz,
um poeta desgraçado,
sem escuridão para dormir
e sem luz.

Fiz tudo errado, inferno, fiz tudo
errado conforme consta
no Manual dos Desajustados
e por isso o tiro
saiu pelo cano, o cano pelo gargalo
e o álcool pela culatra
encharcando a todos
com uma saudade ingrata.

Não me pergunte se eu gostaria de voltar
ter uma nova chance, ou vida,
ou repetir exatamente o mesmo
o que seria algo tão besta
quanto o próprio Nietzsche.

Sim, eu gostaria de voltar a fazer
tudo errado.
Tudo errado! Tudo errado! Tudo errado!
Chutar o balde, derramar o leite sem chorar,
jogar fezes no ventilador, rir, chapar
revirar a mesa de cabeça para baixo
ficar de cabeça para baixo e sentar nela
para escrever ou morrer
e depois chutar o pau da barraca,
picar a mula, entrar pelo cano,
pagar mico, pagar em dólar, e sair
dando cavalinho de pau com um carro
imaginário;
eu gostaria de ser desconhecido.

Eu poderia deixar de ser
aquilo que fui
um mendigo fantasiado de trabalhador
um coelho fantasiado de mágico
um sapo fantasiado de príncipe
um bandido fantasiado de deputado
um lorde às avessas, um truão
a enfeitiçar as duquesas, as marquesas
e as condessas
numa côrte de gelo e de Justiça
para depois bocejar:
“ai, que preguiça!”
Mas não posso.
Não posso deixar de ser,
de mostrar a segunda face
para que o espelho repita a mesma
bofetada que venho levando
da imagem, essa virgem
na Côrte da vertigem.

Esse inseto que sou
não poderei deixar de ser.
Essa sombra, esse mendigo
essa coisa umbilical sem umbigo,
essa puta sem marido, essa história
sem memória, vitória sem glória
essa coisa híbrida de cabeça para baixo
e virada do avesso
tudo isso e muito mais
fui, e fui em vão.
A vida, o erro, a promessa vã e o delírio
fazem parte do bem maior... o automartírio.

.                                            Úmero

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