sábado, 19 de julho de 2014

Do chão não passa



Do chão não passa


foi preciso conhecer o inferno
para pegar gosto
pelos arrabaldes do Céu

foi preciso viver nos arrabaldes do inferno
para apanhar gosto pelo Centro
do próprio inferno

foi preciso chafurdar na lama
do lixo do inferno
para valorizar seu arrabalde

foi preciso deitar e se refestelar no esgoto
da latrina imunda do pior lugar do arrabalde do inferno
para saber que do chão não se passa


Úmero Card’Osso
23/09/2014

domingo, 1 de setembro de 2013

Minha religião



Minha religião não tem nome
é a de um livre pensador
nela o dinheiro e a prosperidade
não são usados como isca para angariar fiéis
e a fidelidade é um valor
cuja satisfação supera, em muito,
os prazeres buscados por quem é infiel
à esposa, aos pais e a si mesmo

Minha religião não tem deus
quando deus é entendido como um território
usado para separar as tribos
e proclamar a verdade de uns em detrimento dos outros

Minha religião não tem um templo
por entender que o templo são todas as casas;
os corações são catedrais
e a devoção que se dedica a uma pessoa
é o altar mais abençoado do mundo

Minha religião não tem orações
porque orações são as coisas que falamos
todos os dias e a todo momento
e por ela aprendi
que mais vale aquele que não profana,
não amaldiçoa, nem usa de mentiras, nem reclama
das agruras da vida ou dos outros
pois falar é orar
e orar é usar o poder da linguagem
para o bem e para a beleza da vida

Minha religião não tem datas marcadas
para satisfazer à sanha dos comércios
ou dar crédito à voracidade devastadora das indústrias
mas sim para viver todos os dias
uma profissão de fé em si mesmo
e uma crença inabalável no futuro
por força daqueles que não deixam o espírito do mal
ou da infidelidade, ou do rancor ou das drogas
ocupar o espaço abençoado de suas vidas

Minha religião não tem dogmas ou rituais
que arregimentam os rebanhos
e que escravizam as mentalidades
pois um bom homem não precisa de dogmas
para ser feliz
nem uma boa família necessita de rituais
para receber os amigos e praticar o bem

Minha religião condena vários pecados
mas nenhum deles obedece a uma fórmula simples
em que o ser humano tem duas escolhas;
pois até mesmo um criminoso pode ser perdoado
e muitos pecados que a tradição condena
no contexto da miséria são verdadeiras virtudes

Minha religião apregoa
a verdade insofismável de que o pior pecado
é a corrupção –
o grande mal humano, o maior crime
e a pior tentação
que viceja e prolifera no coração dos injustos
aos quais será dado como herança o Reino da Morte

Minha religião se professa sozinho
pois a solidão muitas vezes é conselheira
e todo bem humano e toda decisão
em prol de uma vida que abandona
o niilismo do passado, os erros e os vícios
somente encontram frutificação
na semente que o homem carrega
dentro de si mesmo e que só ele próprio
rega...
pois ninguém é dono de ninguém
e a mudança e a felicidade
e o verdadeiro poder e a verdadeira bondade
são frutos, em primeira instância,
do amor próprio.



Úmero

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

sábado, 7 de julho de 2012

Manual dos Desajustados

Na minha vida fiz tudo errado
e deu certo
não “certo” no sentido de “certo”
mas no sentido de que eu não poderia
deixar de estar aqui.

Aliás, eu bem poderia deixar
de ser essa poeira à beira do caminho,
essa embalagem descartável de um vazio maior
que a rotina dos infelizes.
Eu poderia muito bem
deixar de ser esse riso sem eco
nem continuidade
esse humor mal humorado
esporádico e desusado;
deixar de ser esse livro na estante
inconsultável e distante
esse brinquedo de um destino que não sabe brincar
essa fruta podre atirada no vácuo
essa sombra sem luz, arma sem guerra
boi subindo a serra, um mero
animal dormindo no zoológico de seus passos
ou inseto metamorfoseando
no casulo fotográfico das tempestades.

Eu poderia deixar de ser
esse inseto, poeira, sombra ou besteira
dita pela boca de uma criança boba
ou pelos fantasmas que inventei
quando eles mesmos me inventaram
com a reciprocidade caduca
de uma fuga maluca ou aversão
ou ojeriza ou arrependimento
de ser o que sou.

Mas deixar de ser não pude
e fui, cumpri o amargo papel
de desempenhar todas as coisas sem sentido
que se acumularam em minha memória
irrisória
como detritos no ralo,
como restos desprovidos de charme
do banquete do inferno de ser;
cumpri o papel
de elaborar uma imagem razoável
a partir de um ego detestável
e arrogante e fui uma promessa
de uma nova humanidade da qual
já não me lembro quais valores
fundariam o verdadeiro gosto de viver
sem depender dos horrores
da moda
que destroem o meio-ambiente.

Mas essa promessa foi em vão;
essa imagem foi um mero vampiro
que apartei de meu íntimo e cultivei
no âmago de um amargo
sonho esquizofrênico sem sentido
nem embargo; e apesar de tudo isso
ganhei maior consciência de meu desastre
mas continuei poluindo
o meio-ambiente, as cabeças e as fotografias
que se Deus quiser serão queimadas
no incêndio das almas penadas.

O papel que cumpri, cheio de memória
e história particular e intransferível,
que é justamente esta, a de bar,
a história sem memória contada
como anedotas numa conversa fiada,
nos serões do sobrado
ou numa roda de drogados
por ser maior droga do que a própria
droga que alucina e assassina
o que há de mais paradoxal e imenso
na alma pequenina – foi um papel
que não cabe na tragédia do Paraíso
nem na comédia do Inferno
por ter sido demasiado irrisório e sem graça.

Na minha vida fiz tudo errado,
não pude deixar de ser e fui;
eu fui tudo o que fiz de errado
e que me levou ao flagelo
de ser um prédio cheio de andares
interditado e vazio, procrastinado
pela ânsia dos outros
de ver as coisas caírem aos poucos.

Flagelo de ser um oceano
cheio de peixes
ameaçados de extinção.
Flagelo de ser uma borboleta
sem asas, uma águia sem garras,
um Apolo sem cabeça, um terço sem cruz,
um poeta desgraçado,
sem escuridão para dormir
e sem luz.

Fiz tudo errado, inferno, fiz tudo
errado conforme consta
no Manual dos Desajustados
e por isso o tiro
saiu pelo cano, o cano pelo gargalo
e o álcool pela culatra
encharcando a todos
com uma saudade ingrata.

Não me pergunte se eu gostaria de voltar
ter uma nova chance, ou vida,
ou repetir exatamente o mesmo
o que seria algo tão besta
quanto o próprio Nietzsche.

Sim, eu gostaria de voltar a fazer
tudo errado.
Tudo errado! Tudo errado! Tudo errado!
Chutar o balde, derramar o leite sem chorar,
jogar fezes no ventilador, rir, chapar
revirar a mesa de cabeça para baixo
ficar de cabeça para baixo e sentar nela
para escrever ou morrer
e depois chutar o pau da barraca,
picar a mula, entrar pelo cano,
pagar mico, pagar em dólar, e sair
dando cavalinho de pau com um carro
imaginário;
eu gostaria de ser desconhecido.

Eu poderia deixar de ser
aquilo que fui
um mendigo fantasiado de trabalhador
um coelho fantasiado de mágico
um sapo fantasiado de príncipe
um bandido fantasiado de deputado
um lorde às avessas, um truão
a enfeitiçar as duquesas, as marquesas
e as condessas
numa côrte de gelo e de Justiça
para depois bocejar:
“ai, que preguiça!”
Mas não posso.
Não posso deixar de ser,
de mostrar a segunda face
para que o espelho repita a mesma
bofetada que venho levando
da imagem, essa virgem
na Côrte da vertigem.

Esse inseto que sou
não poderei deixar de ser.
Essa sombra, esse mendigo
essa coisa umbilical sem umbigo,
essa puta sem marido, essa história
sem memória, vitória sem glória
essa coisa híbrida de cabeça para baixo
e virada do avesso
tudo isso e muito mais
fui, e fui em vão.
A vida, o erro, a promessa vã e o delírio
fazem parte do bem maior... o automartírio.

.                                            Úmero

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Geração fodida


houve uma geração
de mulheres
que são capazes
de criar muitos filhos
e inclusive os filhos de seus filhos

as últimas gerações
de mulheres
não são capazes de criar seus filhos
porque se libertaram dos lares
com seus vagares de andarilhos

domingo, 17 de junho de 2012

A mãe & a filha



Ela cuida dos seus filhos;
Você, dos seus empecilhos!

Ela, dos seus filhos trata;
Você, ingrata!

Ela prepara todo dia o almoço;
Você uma gritaria, um alvoroço!

Ela cultiva carne frita na banha;
Você furtiva, bonita, se assanha...

Ela alerta para não aceitar encosto;
Você, esperta, atolou-se no desgosto.

Ela avisou para não se casar assim;
Você foi lá, se casou, enfim...

Ela alertou para que não aparecesse grávida;
Você flertou, abusou, ficou pálida...

Ela trabalha, tem compromisso;
Você só malha, e é isso.

Ela tem razão sem ser mandona;
Você não quer ouvir e é cuzona.

Ela faz tudo certo, menos o ter te amado
e você faz tudo errado.

Ela cria os seus filhos como se fossem dela;
Você com os seus brilhos... como se fosse bela.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Maternidade Contemporânea

houve uma geração
em que às mulheres
somente se lhes dava
cuidar de filhos

e à outra geração de mulheres
que se acham as melhores
somente se lhes dá a vaidade:
cuidar de vazios

aquelas mulheres
da geração primeira
escravas imbecis
cuidaram dos filhos vis
brancos ou pretos
e agora pedem bis
e cuidam dos netos

estas outras mulheres
da geração degenerescente
e derradeira
não se dão ao luxo, ao trabalho, à luta
de criar nenhum ente
que se pendure à mamadeira
e se conformam com o nome de “puta”
dando à luz uma choradeira
pouco influente
no escrúpulo da escuta...

Aquelas mulheres, as “mães”,
oriundas de uma geração moral
fecundas como escravas
nada têm a ver com as “filhas”,
putas enxutas
cheias de exercícios e macabras
cirurgias ou dietas
que não têm nada a ver
com a vida das pessoas corretas
belas, maravilhosas e seletas:
nossas mães, nossos pais,
que não viviam como animais
na noite ou na fogueira
da vaidade ou do Juízo Final.

domingo, 3 de junho de 2012

Eu estou cansado

Eu estou cansado
de escrever para mim mesmo
e de perder a essência
daquilo que eu jamais disse
por não ter essência nenhuma
um homem sozinho perdido em pensamentos.

Eu estou cansado
de ser simples
e de ser um poeta ruim
de sorriso torto e alma torta
e de não haver nada reto em meu olhar.

Eu estou cansado
de ver que as pessoas não têm religião nenhuma
de ver que os religiosos não têm fé
e que os fiéis se perderam em futilidades
porque os rituais já não lembram coisa nenhuma
por cultivarem a mesmice e o bocejo.

Eu estou cansado
de todos os poetas do meu tempo
que são fracos e fúteis
que não se atrevem a uma boa bordoada
na cara de algum ídolo ou mito
que a sociedade constitui a cada dia
nos jornais e programas de televisão.

Eu estou cansado
de rimas
de métricas e de caprichos
que conduzem leitores avulsos
ao sedentarismo de nossos impulsos
ou ao nomadismo de nossos lixos.

Eu estou cansado
do ponto final
da palavra que não quer continuar
do pensamento completo
e fechado em si mesmo
como se fosse um feto
que nunca nascerá

Eu estou cansado
da nossa falta de Neruda
das pessoas que não lêem Pessoa
de ver que os poetas bons
morreram
e também estou cansado
de Drummond, Cecília e Cabral
porque a nossa sociedade é cega
para os poetas realmente loucos
surtados, aflitos, rebeldes e bonitos
e só os loucos valem à pena
por se comportarem como putas
na cama desarrumada da linguagem
pois somente os loucos se sujeitam
a satisfazer os prazeres dos outros
e a ansiedade da maioria
da forma mais radical já vista
em que os ansiosos ficam satisfeitos
e mais ansiosos ainda

Eu estou cansado
da falta de tempo para escrever
para mim mesmo
e da falta de tempo para ler aquilo
que eu escrevi para um “eu” longínquo
que já não ocupa os territórios do ego
cujo governo jaz
nas mãos dos outros

Eu estou cansado
dos outros
– os mesmos que Sartre chamou de Inferno
e estou cansado da rotina
de ver sempre as mesmas caras
desgraçadas do trabalho
e estou cansado das estratégias educacionais do governo
coordenadas para alcançar o fracasso
ou um sucesso escamoteado
como o rosto de uma puta velha
com excesso de maquiagem

Eu estou cansado
das escolas e dos hospitais
e inclusive da polícia
pois todos se corromperam
com a propina dos salários
e ninguém mais, com raras exceções,
faz as coisas por prazer ou dignidade.

Dívida no Tráfico

estou duro
quero drogar-me

estou furado
quero empenhar-me

estou empenhado
querem furar-me

sexta-feira, 23 de março de 2012

Um (Me)rgulho no (desa)mar

http://duduluizsouza.blogspot.com.br/2012/03/eu-me-ragulhei-nesse-amar-para-me.html

Eu me-r(a)gulhei nesse (a)mar
para me apaixonar
gostar ou te amar
e nessa onda de vai e vem
de ir e v(ir)
para ali ou além mar
e nesse mergulho profuuundooo...
voltaaar a (super)fície re(alidade)
para respiraa(ar) e nooouus (des)a(r)mar, mon amouu(uu)rrr..

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Mais uma canção do grande Manoel Boca

Mais uma canção do amigo Manoel Boca. Desta vez com dois poemas do meu livro: "O homem do mar" (dedicado ao escritor Moacir C. Lopes) e "Poesia confessional".
Cliquem aí para ouvi-la.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Cantiga do moribundo na voz de Manoel Boca


Aí está a música que o compositor e amigo Manoel Boca fez com o meu poema "Cantiga do moribundo", que, por sua vez, pode ser encontrado no meu Os deuses comem pão e outros poemas (2010). Se não conseguirem ouvir a música aqui pelo blog, cliquem aqui.
O Manoel Boca é cantor e compositor lá de Caratinga-MG e tem tocado junto com outra amiga, a Analigia Reis. Também tem trabalhado junto com a cantora lírica Vânia Melo e certamente tem feito muito mais coisas que eu preciso ainda descobrir. Para ouvir outras músicas suas, entrem no seguinte site: http://soundcloud.com/manoel-boca
Publico aqui o poema na versão do livro. Obrigado Manoel!
Liguem as caixas de som aí e boa apreciação a todos.

Cantiga do moribundo

Vejo um rato no meu quarto
meu olhar repara tudo.
Ele corre pelos cantos
pelos tacos, rodapés.

Tem um rato no meu quarto
que parece não me ver...
me levanto então da cama
deixo a porta entreaberta.

No meu quarto tem um rato,
muitos livros e papeis
manuscritos e jornais
me vigiam das estantes.

Já deitado vejo o rato
que me busca em seu olhar,
nele encontro uma tristeza
que vem dele e vem de mim.

Quando enfim a luz apago
deixo o rato em paz no escuro.

— Boa noite meu pequeno.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Caratinga de braços abertos



Caratinga completou 163 anos com muita festa e uma programação cultural muito interessante. Minha esposa e eu estivemos presentes. Convidamos um grande amigo meu chamado Ednaldo Moreira, que atualmente vive em Campinas, onde faz doutorado em Teoria e História Literária. Ednaldo é natural de Rio Casca. Fomos colegas na graduação, quando moramos em Mariana, e depois estudamos em Belo Horizonte. Apesar de ter nascido tão perto de Caratinga, não conhecia ainda a cidade das palmeiras e da Pedra Itaúna. Bastou o convite, um pouco de propaganda e ele compareceu.
Logo no primeiro dia, estivemos no lançamento de livro do Camilo, apesar de chegarmos no final, por causa do atraso na viagem. Foi o momento de conhecer uma das coisas mais bacanas da cidade, que é a Casa Ziraldo de Cultura, e conferir a exposição Poesia e cartum: duas visões de Drummond. Conversamos com o amigo Camilo, que fez as dedicatórias e deu boas-vindas ao Ednaldo. Depois disso tivemos a oportunidade de tomar uma cerveja gelada ouvindo os músicos Manoel Boca e a Analigia Reis. Meu amigo conheceu todo mundo. A jornalista Fabiane Arêdes listou todos os lugares que ele precisava conhecer na cidade e definiu muito bem o caratinguense como um povo hospitaleiro e talentoso. Devemos ao amigo Hermam Mendes a boa conversa sobre música popular e a situação do compositor na cidade e no Brasil.
No dia seguinte, o primeiro dia de festa, o Ednaldo conheceu o pão de queijo da dona Odila, minha mãe. Era feriado. Estivemos em alguns pontos turísticos da cidade. Meu amigo viu o monumento do menino maluquinho, a construção do santuário e o tapete decorativo que fazem nessa época do ano. Tudo isso muito rápido, pois era preciso subir no alto da Pedra Itaúna, o cartão postal mais importante da cidade. Parapentes deslizavam no céu. O acesso, que merece ser alargado, não está tão mal, mas precisa de cuidados, pois há buracos e mato. No alto da pedra avistamos a cidade pequenina lá embaixo. É de fato muito bonito. Considerei que aquelas antenas poderiam ser afastadas e no lugar poderíamos ter um restaurante ou algo do tipo. Seria muito bom fazer uma refeição vendo aquela vista maravilhosa. De volta, fomos para a praça ver as apresentações musicais no coreto do Oscar Niemeyer, comer e beber. Confesso que não entendi aquelas gravuras religiosas no palco. De qualquer forma, embaixo delas havia boa música. Considerei que o som poderia estar mais baixo, mesmo quando se toca rock. Mas esses detalhes não diminuíram a importância e a beleza da festa. A cidade, aliás, estava lotada. Foi o dia em que tocaram Renata Cordeiro e Ronise Ramos, dentre outros.
No dia de aniversário da cidade, estivemos no sítio de meu pai pela manhã, passando por Piedade de Caratinga. A estrada estava boa. No percurso, meu amigo conheceu a região da avenida Dário Grossi, avistou os prédios da Unec, dentre outras coisas. À tarde estivemos mais uma vez na praça Cesário Alvim. Não queríamos perder o show do Thiago Delegado, cujo trabalho acompanho desde a época em que tocava com o músico Ausier, no Pedacinhos do Céu, em Belo Horizonte. O Thiago Delegado e os demais músicos nos presentearam com um show muito bonito e emocionante. No meio da plateia avistei muita gente conhecida: Nelson Sena, Fernanda Cordeiro, Camilo, Paulinho Paul, Raul Miranda, Edra, dentre outros. Nesta noite pude apresentar ao Ednaldo o meu grande amigo Fernando Campos, que esteve conosco durante o show do Thiago Delegado.
No dia 25 lá estávamos de novo na praça, conferindo os shows. Ficou faltando apresentar ao meu amigo muitas pessoas interessantes da cidade, como o Carlos Araújo e o escritor Maxs Portes. Mas haverá tempo para ele conhecer todo mundo e também a arte produzida pelo caratinguense. No dia 26 nos despedimos do Ednaldo, que seguiu para Rio Casca, sua terra natal. A rodoviária de Caratinga é boa, mas precisa de atenção e melhorias. Tenho certeza que agora Caratinga segue junto com meu amigo e, com ele, rodará todo o Brasil. Adriana e eu ficamos um pouco mais para matar a saudade da terra, da família e dos amigos.

 
Fonte:
TEIXEIRA, Marcos. Caratinga de braços abertos. In: Diário de Caratinga. n. 4734. 30 jun. 2011, p. 07.

domingo, 5 de junho de 2011

Fernando Campos, poeta de sete faces

Foi em Caratinga. Não sei dizer exatamente quando tudo se deu. Sei que foi antes de aparecerem as máquinas digitais e os aparelhos celulares, que um dia, quando andava interessado por fotografias, acabei conhecendo o poeta Fernando Campos, em visita que fiz à sua casa. Quem nos apresentou foi o artista plástico Geraldo Lomeu, que conheci por meio de meu irmão mais velho. Nessa época, o pintor andava com uma máquina profissional e registrava detalhes da cidade das palmeiras. Lembro-me bem de uma pintura inacabada do Lomeu que representava o ventre de uma mulher abrigando uma espécie de jovem de pé grande. Tempos depois ele alterou o desenho e terminou a pintura.
Fomos recebidos pelo Fernando Campos que, em Caratinga, consegue a façanha de ser artista plástico, fotógrafo, poeta, professor e, nas conversas descontraídas, também é um excelente crítico de arte. Posso dizer então que o conheci primeiro como fotógrafo. Ele nos deixou e foi buscar uma caixa de onde surgiram inúmeras fotografias. Foi nos explicando a técnica, os procedimentos utilizados, a perspectiva adotada, a luz empregada, essas coisas. Tempos depois veria uma de suas fotografias, tirada na Gruta de Maquiné, ilustrando a capa de uma das poucas edições da extinta revista Fissura Crônica.
Depois do fotógrafo, conheci o Fernando Campos artista plástico. Em sua casa podemos encontrar sua produção. Um destaque para o busto de Vera, sua esposa, que talvez eu tenha conhecido primeiro pela escultura. Hoje sei que é uma pessoa maravilhosa. Há lá obras em formato de pé, de mão, dentre outras, que são melhor entendidas com a explicação, sempre erudita, de quem as fez. Nas paredes encontramos também obras de outros artistas. Telas de Paulo Vieira e Sinval. Uma pintura de Paulo Vieira tinha um osso transpassado, já em outra encontramos a Pedra Itaúna.
Enfim o conheci como escritor. Talvez o Fissura Crônica tenha tido uma importância neste sentido. Foi por essa época que conheci o Carlos Araújo e a Mírian Freitas, que me foi apresentada pelo Fernando. Nas diversas visitas que fiz ao poeta, pude ler e conversar sobre sua poesia. Também me aventurei a lhe mostrar meus primeiros poemas e recebi verdadeiras palestras que iam da métrica às imagens plásticas. Ao mesmo tempo me informava acerca dos demais artistas caratinguenses. Também foi por esta época que fundamos um jornalzinho chamado Literatura Alternativa, que possui colaboração desse artista de sete faces.
Residindo fora da cidade desde 1999, acompanho de longe o trabalho dos amigos. Quando não posso visitar a terra natal, é por meio da internet e de publicações como a Revista Itaúna que recebo notícias de todos. Mas já que revelei que o Fernando é um grande poeta, um dos melhores que conheço, vejamos um de seus textos publicado nesta revista, em seu número doze, sobre o qual arriscarei um comentário:

Túrgido litúrgico

Não espero senão o momento
em que passe este asco
(em que pese o nojo)
e esta espécie de misoginia.
Um corpo descendo à terra
sob as pás do silêncio,
mais vale pra que eu padeça
as dores todas do mundo.
Vi como eram belos
os olhos tristes da menina,
vi quando suas mãos mergulharam na terra,
em busca de uma paz ressuscitada.
E antes de descer as escadas,
o pai ainda disse à filha,
à guisa de resposta alguma:
‘A alma, minha pequena,
é você pensando nela’.
Salvo engano, é claro o enigma.

Podemos dizer que o poema trata de uma cena de morte. O eu poético relata suas impressões diante do enterro, possivelmente, de um ente querido. O poema permite duas leituras. Numa primeira, a menina permanece viva e assistiu ao enterro de alguém que lhe é importante. Talvez o da própria mãe. Não temos a pergunta da criança, mas é fácil deduzir que se trata do conceito de alma. Numa segunda leitura, temos o enterro da própria menina e, em seguida, uma rememoração do eu poético acerca das coisas do passado: a lembrança dos olhos tristes, a recordação da pergunta sobre a alma feita ao pai.
Nas duas leituras, o asco comum a uma cena de velório se confunde com uma espécie de misoginia, ou seja, a uma aversão à mulher ou ao contato sexual com a mesma. Neste ponto a primeira leitura se fortalece, pois se poderia pensar na figura de uma esposa. O eu poético, diante da própria mulher, estaria desprovido de desejo e acometido pelo asco. Diante da cena propriamente dita do enterro, vista pela metáfora das pás de silêncio, o eu poético sente o tormento e deseja, também ele, o silêncio ou, melhor dizendo, a tranquilidade que talvez o tempo trará. O eu poético então se dirige para a filha que está triste, que avançou sobre a cova num gesto desesperado de restituir o ente querido, e que, pouco depois, pergunta sobre a alma. Uma pergunta de fato metafísica, como: “— O que é a alma?”. O texto, neste momento, se descola do sujeito para mostrar, e revelar ao leitor, que entre a menina e o sujeito atormentado existe uma relação de pai e filha. A cena não impede que ele tente responder a esta e o faça de maneira desprovida de misticismo.
Numa segunda e mais audaciosa leitura, podemos pensar que quem morreu é a menina e, após o seu enterro, temos uma rememoração do passado, pela perspectiva do sujeito que foi ao enterro, que neste caso não é o pai. O texto então se torna um embate entre juventude e morte e o falecimento prematuro nos lembra o famoso verso do poema “Pneumotórax” de Manuel Bandeira: “A vida inteira que podia ter sido e que não foi”.
É preciso observar que os elementos do poema pertencem a um tempo presente: “...o momento / em que passe este asco”; “um corpo descendo à terra”. A partir deste momento, a cena de um enterro, é que o passado ressurge ao eu poético, que solicita, também ele, pelas pás de silêncio, pelo esquecimento futuro. Nesta segunda leitura, a ideia de misoginia perde força em relação à primeira, pois neste caso se trata de uma menina morta. Ao contrário, é certo nojo sufocante que caracteriza o sentimento. Em seguida se dá a cena do enterro. O corpo desce à terra sob pás de silêncio. Para quem está morto a terra que cai não faz barulho. A menina morta recebe o silêncio, já o eu poético, espectador da cena, padece as dores todas do mundo. Silêncio para quem vai, tormento para quem fica. Ainda assim é possível reconhecer ou relembrar a beleza de seus olhos tristes. Os opostos se aproximam no poema: vida versus morte, juventude versus decadência, beleza dos olhos tristes de menina versus o asco despertado pela cena.
Por fim, um momento anterior é rememorado. O cotidiano da menina que desperta para a vida em meio a reflexões metafísicas, quando, por exemplo, nos perguntamos se a alma existe. Antes de descer as escadas, o que sugere diversas coisas, dentre elas o declínio da vida, a proximidade do fim, etc, é que ouve de seu pai que a alma é “você pensando nela”. A alma, sempre pregada por aqueles que nos rodeiam como algo místico e divino, existe por uma racionalidade: “é você pensando nela”. O verso assim dá margem a um questionamento cético. Nesse sentido, é claro o enigma. É racional, pois demanda reflexão, ainda que seja obscuro.
Essa lembrança, à beira da cova, revela mais um vazio do que qualquer crença na eternidade mesmo permitindo a existência de um enigma. O título do poema que apresenta uma rima interna, toante, traz em si o universo místico, no caso, o religioso. Mas esse universo litúrgico é túrgido, o que permite dizer perfeito na forma, por um lado, mas disforme de outro, pois túrgido também significa dilatado, inflado, intumescido. Assim, ainda que lembre Bandeira, é em relação a Drummond que Fernando Campos realiza um forte diálogo neste poema. O último verso remete ao livro Claro enigma, publicado em 1951, trazendo por meio da intertextualidade a relação entre o que é claro, mas ao mesmo tempo enigmático.
 Além dos nossos poetas maiores, o Fernando também me fez lembrar da Henriqueta Lisboa, do livro Flor da Morte publicado em 1949, e em alguma medida dos poetas simbolistas. Mas isso é apenas o que o poema “Túrgido litúrgico” me despertou. Certa vez ele me disse que possui um livro, engavetado, aguardando uma publicação, que pretende distribuir a obra entre os amigos, fazendo uma tiragem pequena. Vamos aguardar o livro deste grande poeta.

E os poetas, prestam?

(republicando textos que foram originalmente postados no meu blog semi abandonado www.carambolismos.blogspot.com)

Ainda quanto à liberdade
10 de maio de 2010.

mas por outro lado, a liberdade também é um problema sério. porque, enquanto me arrebenta o peito, nada do que produzo presta. quero dizer que nada do que eu faço me agrada quando fico assim, livre.  e, ao mesmo tempo, foi quando aconteceu de eu ter liberdade, numa época  em que a solidão era tanta que até meus pensamentos se despovoaram, que eu implodi. porque todo mundo, e isto me inclui, é comum. e eu acho que é do saber geral que quanto menos gente a gente tem na gente, mais a gente corre o risco de se fixar num só que não suporta a barra e foge. apesar do quê, fugir é coisa de vilão. mas quem transforma deliberadamente o outro em vilão é o quê? entendeu? é isso que eu acho. acho também que deve ser verdade que quanto menos atividade se exerce fora do peito, mais o peito se aperta pra dentro de si, numa implosão que faz buraco negro e vira o mau do mundo: salve salve egoísmo! então, olhando por este ângulo, os poetas não prestam e o fundo dessa página é bege. isto porque pra mim não existe 'sem querer'. existe é no máximo  'sem querer eu quis'.