segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Rua da Infância



Marcos Teixeira



Quando criança o mundo me chegava de uma maneira diferente, desprovido das convenções, dos nomes e das explicações. Talvez por isso quando criança perguntamos tanto e queremos saber os porquês, mesmo achando que no fundo aquela resposta não convenceu. Não me lembro quem me disse pela primeira vez que morávamos na rua Princesa Isabel. Talvez meu irmão do meio que me levava e me trazia do grupo escolar que, por sinal, também tem o nome da princesa. É que desde pequeno fui o caçula. Mas me lembro que aquilo me pareceu estranho. Imagina? Uma rua que se chama princesa Isabel. Como? Onde estava a princesa? Se o termo lembrava contos de fada, a rua não lembrava nada. Ainda que o Brasil não tivesse rei, a rua continuava a se chamar princesa e nenhuma relação conseguia estabelecer entre aquela e esta.


Lembro que um dia recebi um papel na escola, a que tem o nome da princesa, com uma imagem da Isabel assinando a Lei Áurea. Talvez fosse maio. A minha impressão foi a pior possível. Aquela mulher (e o papel não tinha uma qualidade muito boa, devia ser mimeografado, coisas da época) parecia tudo, menos princesa. Parecia mãe, pedestre, atriz, qualquer coisa que não fosse princesa. Foi quando comecei a descobrir que havia tido escravidão no Brasil e eu ficava imaginando como seria se nunca tivesse ficado sabendo disso. Muito tempo depois é que leria o Minha formação, do Joaquim Nabuco, e entenderia um pouco mais sobre a Abolição e o Brasil.


Difícil pra mim foi entender que a rua João Pinheiro terminava e começava a Princesa Isabel, assim, sem avisar. Na minha infância ela teria outro nome. Talvez rua da Infância. Quando passo pela rua da infância, um monte de coisas surgem na minha memória. No começo da rua, por exemplo, tinha um verdurão, num ponto que sempre teve um comércio. Ali comprei doce com uma moeda achada na rua. Mais adiante da janela de um casarão caiu um cinzeiro. Peguei-o e estendi com custo a um velho que fumava atrás da janela. À esquerda era a casa de um colega do pré-primário. Tinha ali perto uma casa velha, abandonada, que a gente passava com certo medo. Lembro de um carro azul com muita gente em volta. Na roda, um aparelho instalado para furar o pneu. Devem ter chamado a polícia. Um homem de chapéu vinha passando. Falando em carro, sempre me incomodei com o nome de uma cidade que tinha na placa de uma combi branca que sempre estava estacionada perto da escola: Bom Jesus do Galho. Do galho?


Ah, foi nos tempos da escola com nome de princesa que fizeram a campanha para comprar o relógio da catedral. Pediam que pedíssemos a nossos pais uns trocados para a aquisição do relógio. Hoje quando penso nisso acho estranho. Que causa é essa? Ainda bem que eu não tinha dinheiro no bolso naquela época. Certa vez levaram um menino que havia perdido os dedos soltando foguete ou não sei o quê na festa de São João. Eu fiquei impressionado ao ver que ele não tinha os dedos. Expuseram o menino, mas confesso que nunca botei a mão em nada do tipo. Falando em São João, uma das lembranças mais impressionantes que tenho da infância é a fogueira queimando. Lembro que fui com os adultos ver a fogueira e os fogos. Era uma mistura de sonho e realidade. Se Aníbal Machado vê o carnaval como um elemento surrealista, eu vejo as fogueiras da minha infância. Há anos não fazem aquela fogueira imensa... era uma fogueira arranha-céu.


Na minha rua, soltavam bombinha direto. Eu tinha medo. Foi lá que aprendi a brincar de birosca, pique esconde, bandeira, queimada e outras coisas. Gostava mais do de esconder quando era de noite. Naquele tempo não tinha perigo. Brincávamos na rua até tarde. Tinha menino que se escondia em lotes abandonados. Uns pulavam a grade de uma igreja, uma bonita de telhado colonial, e se escondiam lá embaixo. Naquele tempo a grade da igreja era baixinha. Todo mundo pulava. Nos fundos acontecia até campeonato de futebol. Eu via tudo por cima do muro. Ainda não tinha idade para jogar com a turma. Na rua se jogava além de futebol, o vôlei. Eu ia aprendendo tudo. Muito depois é que descobriria que queria mesmo era ser jogador de basquete... Ah, a queimada se fazia com meia velha com barro dentro. Aquilo queimava mesmo. Outra brincadeira se dava no córrego que corre paralelamente à rua. Os meninos atravessavam bravamente aquelas águas imundas e cheias de merda. Depois diziam que era só tomar remédio contra verme que as mães davam que não tinha problema. Garanto que estão vivos até hoje. Naquela época, a maioria dos quintais se comunicavam na beira do córrego que a gente chamava de rio. Certa época os meninos resolveram colecionar aranhas retiradas da beira do rio. Guardaram-nas vivas em caixas de sapato e as levaram para casa. Alguns diziam esconder a caixa debaixo da cama. É possível que nos sonhos aranhas se misturassem a cobertores e lençóis.


Época de eleição era uma maravilha. A rua se enchia de papel com caras de políticos. A gente desenhava um monte de coisas. Todos ficavam banguelas. Homens e mulheres viravam capetas e era tudo brincadeira de criança. Naquela época já se falava da estrada Caratinga-Ipanema e lembro que muita gente disse ter escrito na cédula eleitoral o nome da estrada, reivindicando o seu asfaltamento. Até hoje não está concluída. Ainda não chega na Estação Biológica de Caratinga, que tem atraído os turistas...


Enfim. Quando vou a Caratinga ainda passo meio flâneur pelas ruas da cidade e vou me lembrando de um monte de coisas de diferentes épocas. Algumas coisas como as palmeiras centenárias e a Pedra Itaúna me encantam desde a infância. Hoje os meninos da rua cresceram e ajudam a movimentar a máquina da cidade. A rua Princesa Isabel está asfaltada e ganhou mais um monte de igrejas. Às vezes brinco dizendo que poderia se chamar rua das igrejas tamanha é a fé do caratinguense. Para mim, no entanto, não simboliza nem fé nem rei nem lei. Será sempre a rua da Infância, a rua dos moleques de rua que colecionavam aranhas vivas em caixas de sapato.


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Pessoal,

Ainda não tenho uma data para o lançamento do livro em Caratinga-MG. Assim que souber entrarei em contato. Quem se interessar em adquirir a obra poderá fazê-lo por meio do site: www.marcosteixeira.hd1.com.br (o preço é R$ 13,00). O envio se dá pelos correios como encomenda registrada.

Abraços,

Marcos Teixeira.

2 comentários:

  1. Não brinca que acabaram com as fogueiras gigantes!...
    Que texto saudoso Marcos! Eu, como Caratinguense emprestado, sinto muitas saudades e quase enchi os olhos d'água ao ler o meu (nosso?) passado...

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  2. Rapaz, pra mim a fogueira tem uma importância enorme. Parece que tem muito tempo que não a fazem. Uma pena. Creio que a fogueira e a festa do meio do ano de aniversário da cidade poderia se transformar num evento muito atrativo para o lugar, o que traria muitos turistas e muito dinheiro para a cidade. Alguém sabe dizer por que de fato pararam de fazer a fogueira arranha-céu?

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